
Fila?
Aquilo era um palavrão, um absurdo, uma falta de respeito humano e acima de tudo, uma total falta de organização. Tinha de tudo. De baiana vendendo cuscuz, cigana vendendo sorte,
criança vendendo bala, marmanjo vendendo batida e até senhores de idade, vendendo lugares melhores na própria fila.
criança vendendo bala, marmanjo vendendo batida e até senhores de idade, vendendo lugares melhores na própria fila.
A única coisa boa que havia naquela fila era o fato de ninguém ser o último por mais de três segundos. Um... dois... três, pronto, chegava mais um para ser o último e o último passava a ser penúltimo. Assim sucessivamente até quando?
Só Deus sabia.
Outra curiosidade, evidentemente para quem observava de fora, era o perfil dos freqüentadores daquela fila. Altos, baixos, gordos, magros, loiros, morenos, ruivos, dentre homens, mulheres e crianças. A fila comportava de tudo, descomportadamente, daquele jeito mesmo que se imagina uma fila, serpenteando ora para a esquerda ora para a direita, sem disciplina tática, sem critério estratégico.
Como disse, não era uma fila comum.
E não parava de chegar gente. Carros eram estacionados a mais de dois quilômetros. Flanelinhas, camelôs, um exército de ambulantes de todos os tipos, naquela altura, já abasteciam os prestadores de serviço que agiam diretamente junto aos enfileirados.
Todo mundo resmungava, criticava, esbravejava, xingava... mas ninguém saía da fila. Depois de andar mais de cem metros sem perceber, um senhor bem vestido reclamava, aos gritos, que a fila não andava. Injustiça. Pura injustiça. Se há uma coisa que esta fila fazia, era andar... e pra frente.
Comentaram até que alguém passou mal do coração, mas teve que se virar sozinho. Ninguém queria perder o seu lugar e, por isso, antes de levar a mão ao peito e desmaiar, segundo testemunhas que se recusaram a dar seus nomes, o indivíduo pediu, encarecidamente, a um dos insensíveis enfileirados, que guardasse seu lugar, caso ele voltasse.
Até o momento em que esta crônica foi escrita, ele ainda não havia voltado, o que dá, a mim e a todos os da fila, o direito de dizer, ou pelo menos de pensar, que infelizmente o homem furou uma outra fila e partiu desta para a que dizem ser melhor.
Como em toda fila, aos poucos iam se formando grupinhos. Os grupinhos iam adquirindo uma personalidade própria, mesmo que aparentemente coletiva. Tal fenômeno é fácil de explicar: em todo grupo há os que ditam e os que escrevem. Normalmente a minoria dita... a maioria escreve.
E assim, pelo menos parecia que o grupo A concordava com os argumentos do grupo C, porém estava em negociação com o B, para decidir se apoiava ou não o pessoal do D.
Para adiantar o expediente e tentar resolver o problema de cada um - ou melhor, de cada grupo - um funcionário, contratado na hora, percorria aquela rua humana de lá pra cá e de cá pra lá, em busca de informações precisas. A primeira sugestão – de um funcionário metalúrgico - foi a da criação de um Sindicato:
SINDFILAERJ - Sindicato dos Freqüentadores de Fila no Estado do Rio de Janeiro.
Não deu, por falta de unanimidade dos pensamentos e dos propósitos de cada grupo.
A segunda sugestão foi a de que se criassem vários sindicatos, cada um para administrar os interesses de cada grupo e seus sindicalizados. Aí o problema passou a ser a contribuição sindical. Ninguém queria doar um dia de trabalho, por ano, para o seu sindicato.
Diante do impasse, a solução foi deixar de lado a idéia de sindicato e aderir à política do Movimento.
MOVIFILAERJ - Movimento dos Vários Integrantes da Fila no Estado do Rio de Janeiro.
Pronto. Elegeu-se o Presidente, o Secretário, o Líder da bancada e logo surgiram os Partidos: o A, seu Líder de Bancada; o B, seu Líder de bancada; e assim por diante.
Mas aí, como num passe de mágica, tudo começou a deixar de fazer sentido. Afinal de contas, em vez de fazer uma fila daquelas, por que não transformar a fila numa grande passeata, com final apoteótico, em um histórico comício?
“Hei, eu tenho uma banda. A gente pode fechar o evento com um show de Axé”.
“Isso: um showmício!”
Eu, cá, com os meus botões, olhava tudo, não entendia nada e me perguntava: pra que? Nem estava mais interessado em entender o que fazia aquela gente toda naquela fila imensa. Só queria entender. Nem que fosse o mínimo.
O papo seguia animado. Os celulares, sacados dos bolsos nervosamente, faziam as ligações e as pessoas gritavam para ser ouvidas no outro lado da linha.
“Vem, vem logo. Deixa isso aí. Corre, ainda tem lugar, mas se você demorar eu não garanto nada. Fala com o Ricardinho, com a Marilza. Aqui. É. Tô esperando. Fui”.
Todo mundo falando ao mesmo tempo, um vozerio só e mais gente chegando. Em 20 minutos a multidão já era umas 4 vezes maior. E lá estavam eles, todos dispostos, a partir de agora, a exercer o seu direito de cidadania.
Nem sei deveria fazê-lo, mas perguntei meio assustado, afinal de contas, para que era aquela fila. E recebi a reposta que vale esta história: “Ah, você não sabe? Eu também não, mas já viu carioca ver uma fila e não parar pra bater um papinho?".
ACORJA
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